Pular para o conteúdo principal

Memórias de um Sargento de Milícias II



Memórias de um Sargento de Milícias é uma das obras mais singulares da Literatura brasileira. Escrita em 1854, trata-se de um romance de humor popular, baseado nas aventuras  de tipos humanos bem característicos da sociedade carioca do começo do século XIX. 

NARRATIVA DE COSTUMES

Destinada às páginas do Jornal O correio Mercantil, do Rio de Janeiro, o romance tem capítulos unitários, quase todos contendo um episódio completo. Em seu conjunto, a obra constitui a vida de Leonardo Pataca e de seu filho Leonardo, em meio a um vivo retrato das camadas baixas do Rio de Janeiro de D. João VI. Além de se concentrar nas proezas  desses dois arquétipo da malandragem carioca, o romance dá muita atenção às festas, encontros, instituições e profissão populares da cidade, cujas ruas são descritas com a animação de uma verdadeira narrativa de costumes. Trata-se, enfim, de um romance muito agitado e festivo, em que não há praticamente nenhuma página sem um incidente ou surpresa espantosa.

ROMANTISMO EXCÊNTRICO

No final do século XIX, o crítico José Veríssimo interpretou Memórias de um Sargento de Milícias como um romance pré-realista, em virtude de sua inclinação para o retrato social. Depois, Mário de Andrade aproximou-o do romance picaresco espanhol. Mais recentemente, Antônio Cândido demonstrou que se trata de um romance propriamente romântico, com a particularidade de apresentar uma certa excentricidade em relação à média das obras do Romantismo brasileiro.

OBRA ORIGINAL

Memórias de um Sargento de Milícias distancia-se da sensibilidade romântica pelas seguintes razões:

→ A história não envolve personagens da classe dominante, mas sim de pessoas de baixa renda, a camada popular.
→ O personagem central (Leonardo) não é nem herói nem vilão, trata-se de um anti-herói malandro, de natureza picaresca, muito próximo do pícaro espanhol.
→ As cenas não são idealizadas, mas reais, apresentando aspectos pouco poéticos da existência.
→ Ausência de moralismo e recusa da ideia de que as ações humanas se dividem necessariamente em boas e más.
→ Troca do sentimentalismo pelo humorismo, do estilo eleado e poético pelo estilo tosco e direto, sem torneios embelezadores.
→ O estilo é oral e descontraído, diretamente derivado da conversa ou do estilo jornalístico da época.
A originalidade de Memórias com relação ao romance romântico limitou sua penetração na época em que foi escrita, mas, de alguma forma, a aproximou do Realismo, do Modernismo e do folclore nacional.
ESTILO JORNALÍSTICO

Manuel Antônio de Almeida foi o primeiro escritor brasileiro a adotar o estilo descontraído do jornal no romance, procedimento que mais tarde, seria um dos principais traços pré-modernistas de Lima Barreto. Desse processo de simplificação estilística decorre a oralidade de Memórias. como todos os seus personagens pertencem às camadas populares, o autor achou que o estilo da obra também deveria possuir um tom popular.
Apesar de sua feição espontânea, há no romance inúmeras palavras e estruturas frasais que já eram antiquadas no tempo do autor. A adoção dessa fórmula harmoniza a linguagem da época do romance (durante o Segundo Reinado) com época de ação (reinado de D. João VI).

DESCRIÇÕES E CARICATURAS

As descrições da obra apontam basicamente  para duas direções: ora para um retrato vivo da indumentária, dos costumes, logradouros públicos e instituições do velho Rio de Janeiro; ora para o exagero dos traços físicos das pessoas e das situações. As caricaturas, tão abundantes quanto expressivas são um excelente exemplo desses exageros. Elas tornam o estilo do romance um tanto popular, mas nem por isso menos humorístico. Há, também, uma infinidade de alusões irônicas e passagens insinuantes, emboras elas não apresentem a fineza encontrada, por exemplo, nas obras de Machado de Assis.

TÉCNICA DO ENREDO E DAS PERSONAGENS

Apesar do título "Memórias", é um romance com foco narrativo em 3ª pessoa. A palavra "Memórias", nesse caso, equivale a apontamento histórico ou relato ditado pela lembrança. Como foi escrito no Segundo Reinado tratando do Rio da época de D. João VI, é evidente que o romance possui algumas propriedades do romance histórico, na medida em que se detém na captação de cenas e costumes do passado. Nesse sentido é que se deve entender o termo "Memórias" do título.
Trata-se também de um romance de costumes com propriedades picarescas, porque sua ação episódica é parcelada. A tênue história central - encontro, separação e união dos protagonistas - funciona como pretexto para a apresentação das diabruras e apertos em que se metem os dois Leonardos. A ação incorpora a variedade, a energia e o curto fôlego das travessuras da infância, da juventude desajustada (filho) e da senilidade precoce (pai).

PERSONAGENS /TIPOS SOCIAIS

As aventuras dos protagonistas envolvem os mais variados tipos humanos ( a cigana, o Mestre de Cerimônia, o Mestre de Reza, o Chico Juca, o Teotônio etc), os quais participam de cenas isoladas e somem, sem maiores consequências para a trama central. Assim é o romance picaresco, expressão derivada do termo pícaro, espécie de personagem marginal que vive do sabor do acaso.
Por ser um romance de costumes, Memórias recompõe hábitos, fornecendo um animado retrato da época. Por essa razão, o autor caracteriza os personagens como parte de um grupo, esquecendo a individualidade psicológica.
Assim, vários personagens não têm nome no livro, mas são designados pela profissão ou condição social que possuem: o barbeiro, a parteira, a cigana, o fidalgo, o mestre de cerimônias, o toma-largura etc. Quando um personagem desses fala ou age, tem-se a impressão de um grande movimento, pois neles vislumbram-se todo o grupo social a que pertencem. Esta é uma das razões por que Memórias é considerado um dos livros mais vivos e dinâmicos da Literatura brasileira.

O REGISTRO SOCIAL COMO MOLDURA DE EPISÓDIOS

Toda vez que o narrador apresenta um episódio da vida de Leonardo ou de outro personagem, ele traça o painel social do contexto em que se desenvolverá a peripécia. Nesta operação, gasta geralmente dois ou três parágrafos, nos quais fornece os componentes do quadro em que se desenvolve a aventura. veja-se, como exemplo, o episódio de uma diabrura de Leonardinho, no tempo em que era sacristão na Igreja da Sé. O episódio desenrola-se durante uma festa religiosa, na qual o Mestre de Cerimônias deveria fazer um importante sermão:
 As festas daquele tempo eram feitas com tanta riqueza e com muito mais propriedade, a certos respeitos, do que as de hoje: tinham entretanto alguns lados cômicos; um deles era música de barbeiro à porta. Não havia festa em que se passasse sem isso; era coisa reputada quase tão essencial como o sermão; o que valia porém é que nada havia mais fácil de arranjar-se; meia dúzia de aprendizes ou oficiais de barbeiro , ordinariamente negros, armados, este com um pistão desafinado, aquele com uma trompa diabolicamente rouca, formavam uma orquestra desconcertada, porém estrondosa, que fazia as delícias dos que não cabiam ou não queriam estar dentro da igreja.
Assim como o elemento pitoresco desse exemplo completa o quadro da festa em que Leonardinho vai aprontar uma de suas peraltices, as demais descrições desse tipo no romance são sempre integradas organicamente ao enredo. Embora elas possam ser lidas como lances de humor ou como flagrantes sociais independentes do que vem antes e depois, não se pode esquecer que essas descrições se integram sempre ao corpo da ação romanesca. Essa integração do pitoresco à estrutura do enredo contribui para a qualidade artística do livro, que quase nunca se perde no meramente documental, pois as coisas e os costumes do tempo encontram sempre o preciso lugar no desenvolvimento da história. São integrados a ela e não exteriores ao seu andamento.
Manuel Antônio de Almeida chega a transcrever três trechos de modinhas populares na época: uma cantada por Leonardo, durante a festa de batizado  do filho; duas cantadas por Vidinha, numa de sua patuscadas com os primos e amigos. Em mais de uma passagem, fornece detalhes sobre o fado, apresentado como dança típica do Brasil.

DOCUMENTO LINGUÍSTICO

Na obra, os namorados tratam-se por senhor e senhora, como se pode ver pela declaração de amor de Leonardinho para Luisinha:
-A senhora...sabe... uma coisa?
E riu-se com uma risada forçada, pálida e tola.
Luisinha não respondeu. Ele repetiu no mesmo tom:
- Então... a senhora... sabe ou ... não sabe?
Mesmo numa roda de conversa, quando alguém se dirige informalmente à jovem Vidinha, o faz na segunda pessoa do plural:
Ai, criatura, disse uma das velhas, quereis que vos reze um responso para cantardes uma modinha?
A linguagem usada pelo narrador obedece  à norma culta do português, mesmo nos momentos mais descontraídos ao longo do romances. Os personagens , porém, às vezes, se expressam pelo padrão popular, que muitas vezes deforma as palavras do idioma. Há registro disso, por exemplo, quando o narrador, tratando da doença do Compadre, refere-se às pílulas que ele deveria tomar. Falando do mesmo remédio, a Comadre diz:
- Pírulas, disse consigo, então o negócio é sério; e eu, que tenho má-fé com pírulas; ainda não vi uma só pessoa que as tomasse que escapasse.
INCLUSÃO DO LEITOR

Um dos importantes traços estilísticos de Memórias é a constante referência do narrador ao leitor. Isso tem certamente a ver com o propósito de estabelecer um suposto diálogo amigável com o público do jornal, isto é, esse traço revela o interesse de facilitar a recepção da obra como deixa o fragmento:
Dadas as explicações do capítulo precedente, coltemos ao nosso memorando, de quem por um pouco nos esquecemos. Apressemo-nos a dar ao leitor uma boa notícia: o menino desempecara do F, e já se achava no P, onde por uma infelicidade empacou de novo.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Memórias de um Sargento de Milícias

Memórias de um Sargento de Milícias foi publicado entre 1852 e 1853 em folhetins anônimos em A Pacotilha, suplemento dominical do Correio Mercantil. Os capítulos saíam à proporção que eram escritos, semanalmente. Em livro, a obra foi lançada em 1854. O livro de Manuel Antônio de Almeida é romântico, todavia, sua sensibilidade não se derramava tanto quanto a dos ultrarromânticos, que constituíam a grande novidade poética na época.  MANUEL ANTÔNIO DE ALMEIDA De origem humilde, Manuel Antônio de Almeida nasceu em 1831. Apesar das dificuldades financeira, Manuel conseguiu formar-se em Medicina, mas nunca clinicou. dedicou-se sempre às artes, tanto ao desenho quanto à Literatura. Para se manter nos estudos, traduzia folhetins franceses, escrevia crônicas e críticas para o correio Mercantil, jornal que publicou os folhetins dominicais de seu romance. Em 1858, Manuel Antônio foi nomeado diretor da Tipografia Nacional, ocasião em que teve oportunidade de auxiliar o então tipógrafo J